domingo, outubro 05, 2008

Fragmento de Jarra Esgrafitada de Técnica Mista, encontrada em al-Qasr al-Fath/Alcácer do Sal








1. Introdução
O fragmento em estudo foi encontrado no interior do Castelo de Alcácer do Sal[1], em data que desconhecemos e encontra-se depositada nas reservas do Museu Municipal Pedro Nunes.
Trata-se de uma produção exógena, de provável origem Balear, apresentando uma técnica mista, esgrafitado/corda seca parcial, que segundos os dados disponíveis só aparece em Alcácer do Sal, estando ausente no Garb al-Andalus, nomeadamente em Silves ou Mértola.


2. Jarra.
Número de inventário – 3687.
Fragmento de parede. Apresenta a sua superfície externa coberta por uma técnica mista de esgrafitado em engobe de cor preta, associado a vidrado de cor verde-claro. No engobe preto foi esgrafitado um motivo geométrico, representado o “ cordão da eternidade”. O motivo em corda seca parcial também representa o mesmo tema numa gramática mais solta.
A superfície interna encontra-se coberta por engobe beje. A pasta é de cor avermelhada no seu nucleo e beje junto às superfícies. Contêm e. n. p. de grão fino (quartzo cristalino)
Espessura da parede - Entre 3 mm e 5 mm.
O motivo decorativo identificado, a "Corda da Eternidade", corresponde a uma temática em uso na fase almoada e que foi empregue em peças cerâmicas, nomeadamente nalgumas grandes talhas estampilhadas encontradas em Alcácer ou então em contexto arquitectónico, como é o caso do mihrab da mesquita almoade de Mértola.


3. Breve Comentário
Apesar de os primeiros exemplares de cerâmica esgrafitada no Garb al-Andalus terem sido dadas a conhecer nos anos 80/90 do século passado[2], o panorama actual pouco mudou.Tanto no caso de Silves como em Mértola, os exemplares dados a conhecer correspondem a produções de técnica simples e terão sido produzidos na região de Múrcia/Lorca.
Se aceitarmos os dados actualmente disponíveis, verificamos que cidades portuárias com forte presença almóada, como é o caso de Tavira e Faro, apresentam ausência deste tipo de produção exógena, o mesmo se passando no caso de importantes cidades do interior do Garb, como por exemplo Loulé, Beja ou Marachique/Castro da Cola.Face ao exposto, o conjunto de cerâmicas esgrafitadas exumadas na alcáçova de Alcácer do Sal, onde aparece a técnica simples de esgrafitado e a mista (esgrafitado/corda seca parcial), adquire um valor documental muito interessante.
Se analisarmos detalhadamente as funções que Silves, Mértola ou Alcácer tiveram em contexto almóada, verificamos que estamos em presença de três importantes bases militares que dominaram vastos territórios de fronteira terrestre e marítima.A questão que se levanta neste momento é saber qual a razão se só em Alcácer do Sal aparecerem alguns fragmentos com esgrafitado associado à corda seca parcial, estando ela ausente de Silves ou Mértola?
Segundo Júlio Palazon, os achados de cerâmicas com esta técnica é rara na região de Múrcia[3], mas é abundante na Ilha de Maiorca, num local chamado Carrer de Zavellá, que poderá ter sido um centro produtor.Partindo do pressuposto que os achados de Alcácer foram produzidos na Ilha de Maiorca, que significado têm no contexto Waziri alcacerense?
Será que é mais uma prova que terá existido em Alcácer um ambiente requintado no interior do "palácio" dos Ibn Wazir e que estes teriam a máxima estima do poder central almoada?
Os dados actualmente disponíveis permitem considerar al-Qasr uma base militar importante, que tambem possuia um certo grau de autonomia, que seria tolerado pelo "poder central". Como refer Ibn Khaldun na sua obra " Muqaddima" - Toda a dinastia é mais forte no seu centro do que nas suas fronteiras.Outra questão em aberto prende-se com a datação destes fragmentos, que já em 2001 demos a conhecer no encontro de arqueologia islâmica ocorrido em Cáceres e Lisboa, organizado pelo IPPAR e Região Autónoma da Estremadura.
A cidade de Alcácer do Sal é conquistada pelo Califa Ya´qub al-Mansor em 1191, mas a conquista da ilha de Maiorca pelas tropas califais almóada só acontece em 1203 no reinado de al-Nazir[4].Tendo em conta o carácter de propaganda do aparelho militar e estatal almóada, que deixou reflexos na cerâmica usada no quotidiano e sabendo de antemão que o esgrafitado produzido em Múrcia no emirato Mardanis também tinha uma carga ideológica contrária aos almóadas e favorávida ao Califado dos Abássidas, era de prever que esse tipo de cerâmica tivesse sido marginalizada no al-Andalus.
Contudo os dados arqueológicos mostram claramente que ela foi conhecida e usada em Alcácer, mas aparentemente dentro do palácio/alcáçova, no seio dos Banu Wazir.Apesar da fragilidade dos dados disponíveis, aceitamos que as primeiras cerâmicas de técnica mista terão chegado a Alcácer após a conquista de Maiorca.
Face ao exposto este conjunto encontra-se cronologicamente inserido entre 1202 e 1217 e podem antever uma ligação e interesses mútuos entre as Ilhas Baleares e a zona atlântica de Alcácer, cujo alcance desconhecemos.
Será que se tratam de ligações ulteriores ? Algumas cerâmicas exumadas em Alcácer demonstram uma ligação interessante com a actual Tunisia que remontam a meados do século X, podendo as Ilhas Baleares terem servido de placa giratória...

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Bibliografia
GOMES, 2002. Silves (Xelb), uma cidade do Gharb Al-Andalus: A Alcáçova.
Instituto português de Arqueologia.
KENNEDY, H. 1999. Os Muçulmanos na Península Ibérica. Publicações Europa-América.
NAVARRO PALAZON, J. 1986. La cerâmica Esgrafiada Andalusi de Múrcia.Publications de la casa de Velazquez.
PAIXÃO, A Cavaleiro e CARVALHO, A Rafael, 2001. Cerâmicas almóadas de al-Qasr al-Fath (Alcácer do Sal). GARB, Sítios Islâmicos do Sul Peninsular, páginas 199-229.


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Notas de Rodapé
[1] Tendo em conta que a totalidade dos fragmentos de cerâmica esgrafitada de Alcácer são provenientes do Convento de Nª senhora de Aracoelli (Dar al Imiara dos Banu Wazir), é provável que este exemplar tenha aí sido recolhido.
[2] Alguns fragmentos exumados em Mértola (Torres, Macias e Gomez) e na Alcáçova do Castelo de Silves (R. V. Gomes e M. V. Gomes).
[3] Provavelmente a zona mais importante, produtora da técnica simples de esgrafitado.
[4] Até 1188 as ilhas baleares estavam inseridas no império almóada. Nesse ano, Abd Allah n. Ghaniya, partidário da herança almorávida, conquista as Ilhas de Maiorca e Minorca, torna-se soberano autónomo, celebrando alianças comerciais com o Reino de Aragão e Génova. Anos mais tarde, em 1200 tentou a conquista de Ibiza, mas fracassou. Em 1202 teve inicio a recuperação califal das ilhas, com a conquista de Minorca pela frota califal comandada pelo sayyid Abu ´l-Ula. Só no ano seguinte foi ordenado o assalto final a Maiorca, sob o comando do mesmo Abu ´l-Ula, acompanhado com o hafecida Abu Sa´id Uthman n. Abi Hafs, num total de 1200 soldados de cavalaria, 700 arqueiros e 15 000 soldados de infantaria (Kennedy, 1999, Os muçulmanos na Península Ibérica, página 278-279)

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