domingo, outubro 05, 2008

O Escorial das Paulinas/Palmela






Este trabalho foi inicialmente publicado on-line, no Arqueo-Alcácer, Blogpost, em 2006. Mantivemos o texto e as imagens originais.





Introdução
O presente estudo foi elaborado no ano de 2004, na altura em que era o arqueólogo do Serviço de Arqueologia de Palmela.
Por questões de vária ordem não me foi possível publicar nesse ano.
Pelo interesse que tem para o estudo de uma das fases "obscuras" da presença humana no Baixo Sado, achamos oportuno dar a conhecer este estudo.
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Resumo - Arqueossítio identificado por Gustavo Marques em 1985, o local foi objecto de uma primeira notícia que demos a conhecer na década de 90 do século passado. Os novos elementos entretanto recolhidos e uma nova abordagem do local, permitiram renovar a leitura que tínhamos desta ocupação, que terá tido início em contexto romano tardio.Cientes da importância deste local para a compreensão da Antiguidade Tardia e início da Islamização na região, efectuamos o estudo da escassa documentação arqueológica disponível.
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A B S T R A C T - The archaeological place was discovery by Gustavo Marques in 1985, and later in 1992, we white a small note. After that, new element was discovery and we can now make a new study about the place. We think the Paulinas were an important place for de studies about the Late Antiquity and Islam in Palmela region.
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1. Localização
O arqueossítio estende-se ao longo da margem esquerda da ribeira da Marateca, num banco de areia existente a sul da aldeia de Águas de Moura, actual sede da Freguesia de S. Pedro da Marateca.Possui as seguintes coordenadas Gauss: X: 539, Y: 789, carta militar de Portugal n.º 456, Marateca, Palmela, 1971.
A estação estende-se por uma vasta área, entre as cotas 0 e os 10 m.
O terreno é arenoso de cor branco e na área arqueológica encontra-se um pouco enegrecido. Para sul desenvolvem-se algumas colinas constituídas por argilas arenosas de cor amarela de idade geológica atribuída ao Miocénico.
Segundo indicações prestadas no local, nessas colinas foram encontradas cerâmicas. Após uma prospecção aí efectuada, nada foi encontrado, contudo a questão permanece em aberto.
Uma das razões que poderá ter contribuído para a inexistência de construções recentes sobre o local, é de existir uma tradição local, que atribui aos escoriais situados ao longo das margens da Marateca, propriedades que permitem atrair os raios das tempestades.
Os escoriais também foram referidos num documento do século XV, como “terrenos queimados “.
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2. Identificação
O arqueossítio foi descoberto por Gustavo Marques, no âmbito de um trabalho de prospecção arqueológica efectuada na Freguesia de S. Pedro da Marateca, efectuada nos meses de Novembro e Dezembro de 1985 e cujos resultados deu a conhecer num relatório que entregou à câmara municipal de Palmela, em 1986.
Designado como arqueossítio n.º 8, Gustavo Marques refere laconicamente no referido relatório (página 11) “ 8. Escorial das Paulinas.
Recolhemos neste local alguns materiais que parecem definir a presença romana”.
Em 1989 voltamos ao local no âmbito da actualização da carta arqueológica do concelho de Palmela e foi nesse ano que descobrimos uma peça em calcário conquífero, que num estudo posterior interpretamos como base de coluna (Fernandes e Carvalho, 1993, p. 113), posição que (eu não defendo actualmente) e que será discutida mais à frente.
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3. A documentação arqueológica
3.1. As cerâmicas.
As cerâmicas apresentadas neste estudo, que foram recolhidas pelo autor em 1997, encontram-se depositadas nos reservados do Museu municipal de Palmela.
Os exemplares apresentados, manifestamente em número reduzido, espelham uma situação muito concreta em relação ao local.Ou seja, apesar da área imensa do arqueossítio, a documentação arqueológica à superfície resume-se a fragmentos de escória de metal e raras imbrices.
A cerâmica comum é quase inexistente e durante anos não foi possível recolher nenhum fragmento no local.
Esta questão da quase ausência de cerâmicas que verificamos nas Paulinas é infelizmente corrente na quase totalidade dos escoriais da Freguesia da Marateca.
Esta lacuna documental de natureza arqueológica, condicionou em muito o estudo dos referidos escoriais espalhados ao longo da ribeira, porque a ausência de cerâmicas não nos permitia efectuar uma abordagem de forma coerente aos locais.
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● Catálogo
Panela
Fragmento de boca, com colo e arranque de parede lateral.Apresenta bordo de secção arredondada. O lábio interno apresenta-se polido e mostra vestígios de lume. A superfície externa, de cor acastanhado escuro, apresenta-se brunida. A superfície interna, de cor avermelhada de tom acastanhado, apresenta-se alisada e ponteada por grãos leitosos de quartzo e provavelmente de quartzito? de tamanho médio. A pasta apresenta uma escassa presença de mica de grão fino. A sua cor é avermelhada acastanhada, escurecida por acção do lume. Apresenta uma película negra coincidindo com a superfície externa.
Diâmetro de bordo – 15,4 cm.
N.º de Inventário – E.P.04/5
Cronologia provável – Séculos VI-VIII
Panela
Fragmento de boca, com colo e arranque de parede lateral.Apresenta bordo de secção arredondada, terminando em bico. Junto a este “bico”, no lado externo desenvolve-se uma linha incisa pouco prenunciada. O lábio e o colo na sua superfície externa, apresentam-se brunidos e mostram vestígios de lume. A superfície externa, de cor acastanhada, apresenta-se brunida. A superfície interna, no mesmo tom de cor, apresenta-se alisada e ponteada por grãos leitosos de quartzo e provavelmente de quartezito? de tamanho médio. A pasta apresenta uma escassa presença de mica de grão fino. A sua cor é avermelhada acastanhada, pouco alterada por acção do lume. O tipo de pasta e tratamento de superfície assemelha-se ao exemplar anterior, tratando-se por certo de duas peças com a mesma proveniência de oleiro.
Diâmetro de bordo – 15,9 cm.
N.º de Inventário – E.P.04/3
Cronologia provável – Séculos VI-VIII
Oenochoae
Fragmento de boca de uma jarra, provavelmente correspondente a um oenochoae, de bordo trilobulado, apresentando arranque de colo.Teria uma asa lateral e corpo piriforme. Apresenta bordo de secção arredondada. Todo o fragmento mostra a acção do lume. A superfície interna, de cor escura por acção do lume, apresenta-se brunida e teria uma cor acastanhada escura, como é visível num dos cantos e na superfície interna. A superfície interna, de cor acastanhada, apresenta-se alisada e ponteada por grãos leitosos de quartzo e provavelmente de quartzito de tamanho médio. A pasta apresenta uma escassa presença de mica de grão fino. A sua cor é avermelhada acastanhada, escurecida por acção do lume. Apresenta uma película negra coincidindo com a superfície externa. Apresenta o mesmo tipo de fabrico e tratamento de superfície das panelas atrás descritas.
Diâmetro provável de bordo – 5,2 cm.Altura provável – 14,4 cm.
N.º de Inventário – E.P.04/4
Cronologia provável – Séculos VI-VIII
Jarra ou panela
Fragmento de fundo com arranque de parede lateral.Apresenta no fundo um conjunto de sulcos da roda de oleiro. A superfície externa, de cor acastanhada escura, apresenta-se alisada. A superfície interna, de cor acastanhada, pouco alisada e ponteada por grãos leitosos de quartzo e quartzito de tamanho médio e grosseiro. A pasta apresenta-se arenosa, e contêm escassa mica de grão fino. A sua cor é do mesmo tom das superfícies e apresenta sinais de escurecimento por acção do lume. O fabrico em torno pouco rápido aproxima-se das produções romanas do Sado, nomeadamente do Zambujalinho, podendo corresponder a uma fase tardia da sua produção.
Diâmetro do fundo – 9,8 cm.N.º de Inventário – E.P.04/6
Cronologia provável – Séculos VI e VII
Forma Hayse 99
Fragmento de bordo.Apresenta ambas as superfícies com engobe laranja-avermelhado, baço. A pasta é de cor laranja-avermelhado, branda e folheada.
Diâmetro de bordo – 19,7 cm.
N.º de Inventário – E.P.04/1
Cronologia – Séculos VI-VII
Forma indeterminada
Fragmento com bordo e carena. Forma indeterminada, de grande diâmetro.Apresenta bordo de secção arredondada com espessamento externo saliente. O lábio e a superfície externa apresentam-se alisados e cobertos por um espesso engobe de tom acinzentado. A superfície interna apresenta-se pouco alisada. A pasta é grosseira e de cor negra. Apresenta elementos não plásticos de grão médio e fino, nomeadamente quartzitos e quartzo leitoso. A mica é escassa.O tipo de bordo, arredondado com espessamento externo, situação rara em contexto visigótico, têm todavia mais expressão em contexto islâmico a partir do Emirato, o que permite sugerir que estaremos em presença de uma produção local com influência islâmica e datada já do século VIII.
Diâmetro de bordo – 26,3 cm.
N.º de Inventário – E.P.04/2
Cronologia provável – Séculos VII-VIII

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3.2. “ Pia Baptismal “.
3.2.1. Catálogo.
Pia Baptismal Paleocristã
A peça talhada em calcário conquífero, apresenta-se muito rolada. A face superior mostra uma grande concavidade circular perfeita na zona central, rodeada por quatro concavidades também circulares, mas de menor dimensão.
Diâmetro – 42 cm.Diâmetro de bordo da concavidade central – 30,5 cm.Altura – 22 cmDiâmetro da base – 31,2 cm.Profundidade máxima da concavidade central – 16,4 cm.
Diâmetro de bordo médio das concavidades laterais – 0, 75 cmProfundidade média das concavidades laterais – 0,26 cm
N.º de Inventário – E.P/1
Bibliografia – Fernandes e Carvalho, 193.2.2.
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Comentario.
3.2.2.1. Fase inicial de uso.
Na primeira abordagem que efectuamos à peça, pensávamos na altura já com algumas reservas, que estaríamos em presença de uma base de coluna, contudo não apresentamos uma leitura acerca da função das concavidades existentes, que sempre nos intrigaram.
Actualmente, com novos elementos interpretativos disponíveis, mantemos a hipótese inicial de se tratar de uma base de coluna, que numa fase posterior foi adaptada a “ pia baptismal “.
Os melhores paralelos que encontramos referentes à base de coluna, são provenientes de peças semelhantes exumadas em Mértola na “Igreja Paleocristã”.
Na foto nº 11[1] é visível um programa decorativo idêntico à peça das Paulinas. Segundo Santiago Macias, a Igreja terá sido construída provavelmente em 462 d. C[2].
Se efectivamente a peça das Paulinas teria sido uma base de coluna, desconhecemos a sua proveniência. O calcário conquífero que constitui a peça parece ser de idade geológica do Miocénico e é semelhante a certos afloramentos da região da cidade de Lisboa, nomeadamente na zona de Santos o Novo/Santa Apolónia, no local onde se implantou o Convento com o mesmo nome.
Se aceitamos a hipótese de a peça em presença demonstrar um reaproveitamento diferente da sua função inicial, teremos que pressupor que a sua elaboração terá ocorrido num momento anterior.
A sua tipologia pouco adianta em termos cronológicos, porque se trata de uma gramática decorativa que pouco evoluiu durante o Alto e Baixo Império.
Um dado que deveremos realçar é a sua dimensão, que poderá ser um indicador da sua função inicial. De facto o seu tamanho permite supor que faria parte de um conjunto monumental, provavelmente de caracter publico e tal facto pressupõe por um lado que esse edifício se localizava em contexto urbano e que a sua construção terá ocorrido num dado momento, anterior ao século IV.
A documentação romana tardia mostra que é a partir dessa centúria, que alguns imperadores elaboram legislação a autorizar o reaproveitamento de materiais existentes em monumentos públicos, caso de Teodósio.
Segundo Sonia Gutierrez, uma das características da cidade tardia é o predomínio do individual sobre o público e nesta perspectiva têm todo o sentido o reaproveitamento dessa classe de materiais.Bons exemplos desta situação poderemos ver em Barcino (escavações da Praça do Rei) ou em Idanha-a-velha.
3.2.2.2. Segunda Fase de utilização (adaptação à liturgia cristã).
As razões que levaram a um reaproveitamento da peça para fins litúrgicos cristãos poderá não ser difícil de explicar, contudo que o destino final tenha sido no Escorial das Paulinas, torna-se numa questão mais complexa e pouco clara, devido às características da documentação arqueológica visível no local, que é escassa e também à inexistência de uma intervenção arqueológica, num local que à partida parece estar muito destruído pelas actividades agrícolas.
A transformação da hipotética base de coluna em bacia baptismal, representa um reaproveitamento de uma peça que possui as dimensões interessantes ao fim em vista.De facto nota-se que foi efectuado um conjunto de operações destinadas a transformar a peça para a adaptar às suas novas funções.
Para além de se ter invertido a orientação inicial da peça, a zona que foi alvo de transformação correspondia à sua base.
Nela foi escavada uma grande saliência central ladeada por quatro outras saliências de menor dimensão.A zona imediatamente inferior foi polida de forma a transformar essa zona num colo e para conferir à peça uma leitura de bacia baptismal.O melhor paralelo encontrado até ao momento é proveniente de Mérida (figura 197/pilas) e foi dado a conhecer por Cruz Villalón no seu trabalho – Mérida Visigoda, 1985.
Seguindo a autora[3], este conjunto de peças:” Sigue siendo un problema dentro de la arqueología cristiana hispánica definir con exactitud la función de un conjunto significativo de pilas, la mayoría con carácter religioso a juzgar por su iconografía. Es lógico pensar que tuvieran una conexión con la ceremonia del bautismo.”
Mais à frente a autora chama a atenção que nesta fase romana tardia e tendo como base os textos existentes, a forma típica de baptismo era pela prática de imersão, aludindo-se ao termo “fons” que quer dizer piscina e não pia.
Contudo a documentação arqueológica demonstra a existência de algumas pias baptismais, dispersas pela hispânia e sem contexto arqueológico preciso.
No presente caso das Paulinas, a pia baptismal aparece num contexto romano tardio, num local que à primeira vista funcionou como escorial e que em termos cronológicos talvez tenha sido desactivado em contexto islâmico emiral.
3.2.3.Conclusões possíveis.
Se efectivamente estaremos em presença de uma “pia baptismal “, torna-se mais problemático explicar o porquê do seu aparecimento no Escorial da Paulinas.
Em princípio e como já referimos, estamos em presença de uma oficina de metalurgia que terá tido início nos séculos V/VI e terminará em meados do século VIII.
A pia, revela por outro lado uma faceta religiosa inesperada que põe em causa uma leitura tão simplista das funções deste local e que importa reflectir.Após os donos do terreno terem arrancado um pomar de pêssegos aí existente em meados dos anos 90 do século passado, o terreno terá sido de tal maneira revolvido e destruído, que na última vez que lá estive em 2005, tive dificuldade em detectar vestígios arqueológicos à superfície.
Por outro lado, a inexistência de materiais de construção no local (pedra ou lateres romanos), e por outro lado constatando a existência unicamente de imbrices, levam-nos a supor que a existirem construções no local, estas teriam sido erguidas com base nos materiais mais comuns no local, como por exemplo a madeira e a argila.Dados obtidos na vizinha ocupação do Zambujalinho, (segundo Isabel Cristina Fernandes que agradecemos), sabemos que era conhecida e utilizada a técnica de construção em taipa.
Esta mesma técnica foi a título de exemplo utilizada na ocupação romana da Ilha do Pessegueiro.
Talvez esta hipótese de construções em taipa, explique a cor da areia, que para além de apresentar manchas escuras por causa da escória, apresenta também grandes manchas arenosas de cor amarelada, de textura argilosa.
Face ao exposto, admitimos que estaremos em presença de uma oficina de metalurgia de ferro e que nela existiu um edifício de culto paleocristão que ministrava o baptismo e o culto na região envolvente da Marateca.
Poderia ser um Monasterium, mas estamos mais inclinados em supor que provavelmente seria uma sede de paróquia rural, que daria apoio espiritual à população residente na região e àquela que trabalhava nos escoriais vizinhos.
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Bibliografia principal.
CRUZ VILLALÓN, M (1985) – Mérida Visigoda. La escvltura arqvitectónica y litvrgica. Badajoz.
MACIAS, S (1993) – Um espaço funerário. In Museu de Mértola. Basílica Paleocristã, páginas 30 - 62

FERNANDES, I Cristina e CARVALHO, A Rafael. 1993 - Arqueologia em Palmela 1988/92. Catálogo da exposição. (peça nº 19, páginas 17 e 19).

FERNANDES, I Cristina e CARVALHO, A Rafael. 1996. - Elementos para uma Carta Arqueológica do Periodo Romano no Concelho de Palmela. Actas das I ªs Jornadas sobre Romanização dos estuários do Tejo e Sado, páginas 111-135. Publicações D. Quixote.

MARQUES, G. (1986) – Relatório. Prospecção de Património da Freguesia da Marateca., Câmara Municipal de Palmela. (Policopiado).
Varios Autores (1981) Atlante delle forme ceramique. I Cerâmica fine romana nel bacino mediterrâneo (médio e tardo impero), páginas 109-110
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[1] Macias, Santiago. 1993. Um espaço funerário. Museu de Mértola. Basílica Paleocristã. Página 42.
[2] Macias, Santiago. 1993. Um espaço funerário. Museu de Mértola. Basílica Paleocristã. Página 54.
[3] Obra citada, página 233, referente às pilas.

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