domingo, outubro 05, 2008

O Papel do Hisn Turrus/Torrão, no Sistema Defensivo Tardo Islâmico de Alcácer



1. Introdução

Desde meados do século XIX, que alguns autores, como Dozy, têm concluído sem muita convicção que o castelo chamado Turrus, referido por Ibn Idari[1], no seu relato dedicado ao desastre das tropas almóadas em Santarém, corresponderia aos actuais castelos de Torres Vedras, Torres Novas ou ao castelo de Coruche, como é exposto como hipótese num trabalho recentemente publicado[2].

Pela nossa parte, com base nos estudos que temos levado a efeito no Baixo Sado Islâmico e numa reanálise do al-Bayan al-Mugrib Fi Ijtisar Ajbar Muluk al-Andalus Wa al-Magrib, avançamos a hipótese de localização desse castelo/hisn Turrus na actual Vila do Torrão.

2. O Torrão em contexto islâmico.

Apesar do grande avanço em termos de investigação histórica e da arqueologia islâmica nos últimos anos na região de Alcácer do Sal, ainda é escasso o conhecimento que temos da ocupação muçulmana no território que actualmente compõe o nosso concelho.

Em relação à presença islâmica na Vila do Torrão, desconhecemos praticamente tudo.Até há pouco tempo, as únicas referências conhecidas da existência de um castelo e de um alcaide, aparecem em alguma documentação medieval cristã de meados do século XV, num período em que o Torrão é sede de concelho.


Por outro lado, parece não existir nenhum estudo referente ao passado islâmico desta região com personalidade própria, porque os trabalhos publicados têm sido direccionados para os contextos romanos e para a fase medieval cristã.A análise que temos feito da evolução politica, administrativa e militar de Alcácer em contexto islâmico, têm permitido verificar que o Torrão possui um papel estratégico de primeiro nível, e que domina um espaço estratégico entre Alcácer e Évora.Ainda à muito a investigar, e a falta de documentação arqueológica e a quase ausência de referências nas crónicas muçulmanas e cristãs têm dificultado muito o estudo do Torrão neste amplo período, que vai desde a antiguidade tardia até à autonomia concelhia obtida em 1249.

Este nosso contributo, o primeiro que pretende reflectir um pouco sobre o Torrão e o seu território em contexto islâmico, será direccionado para os finais do século XII e inícios do XIII e irá ter como base, um relato de um autor muçulmano que escreveu uma crónica valiosa sobre o Califado Almóada, relatando com pormenores desiguais uma série de factos acontecidos nessa época.Dividimos o trabalho em duas partes:


- Na primeira será feita a análise do texto muçulmano com base nos novos dados historiográficos.- Por fim, partido da certeza com base na análise exposta que o topónimo hisn turrus citado no troço de texto em análise, corresponde à actual Vila do Torrão, iremos analisar o referido castelo à luz dos eventos dos finais do século XII e inícios do século XIII, valorizando esta praça-forte na zona de fronteira entre o Reino de Portugal e o Califado Almóada.



O mapa apresenta a fronteira entre o Reino de Portugal e o Império Almóada em 1184 após o desastre islâmico de Santarém. A linha em direcção ao Torrão mostra o trajecto provável do exército almóada de regresso a Sevilha, com o emir almóada gravemente ferido de morte.


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3. A Fonte muçulmana.

Turrus é um topónimo frequente no al-Andalus, com vários exemplos no sul de Espanha.


No âmbito do relato de Ibn Idari, verificamos que o autor por vezes ao querer simplificar toda a trama politica e psicológica dos eventos, não vai ao pormenor de diferenciar os vários Turrus do território Português.

Só uma leitura mais atenta dos intenerários tomados e do contexto geográfico relatado, permite identificar o castelo Turrus em causa, ou seja; - nuns casos ele refere-se ao Castelo de Torres Novas e noutros refere-se ao castelo de Torres Vedras.


Noutros casos, alguns autores sugerem sem muita convicção que o cronista muçulmano esteja a falar do Castelo de Coruche ou então o Castelo de Montemor-o-novo, que na nossa perspectiva não têm fundamento, tanto a nível linguístico como da própria conjuntura militar descrita.

A referência ao Turrus que nos interessa, vem descrito no capítulo que Ibn Idari dedica ao desastre de Santarém, acontecimento ocorrido em 1184 e cujo resultado foi muito traumatizante para o califado almóada, porque é na sequência dessa derrota militar que o emir al-Mu´minim, pai do Ya´qub al-Mansur é ferido de morte, vindo a morrer no decurso da viagem de regresso, depois de atravessar o rio Guadiana, algures entre Moura e Serpa.


O próprio Huici Miranda no estudo crítico que faz às várias fontes muçulmanas e cristãs, chega à seguinte conclusão:“

- Este Turrus o Torres que el «Bayan» coloca claramente en el Alentejo, no puede ser ni el Torres-Vedras, que quiere Dozy, ni el Torres Novas, cerca de Tomar, que fue asaltado seis años más tarde por Ya´qub al-Mansur. No he podido localizarlo en esa región…”[4]


Por ser um texto longo, iremos só comentar alguns trechos com interesse para o nosso trabalho, transcrevendo-os numa tradução livre que efectuamos da tradução do árabe para o espanhol, de Huici Miranda. (PUBLICAÇÃO DA NOTICIA DA MORTE DO EMIR AL-MU´MINIM, ABU YA´QUB, FILHO DE ´ABD AL-MU´MIN, NESTA CAMPANHA, páginas 71 a 73).

“ Disse Abu-l-Hayyay Yusuf b. ´Umar: que quando empreendeu o Amir al-Mu´minin esta campanha, em que morreu, contra o inimigo do Algarve, Ibn al-Rink[4], ….., por causa da má vizinhança e graves danos aos muçulmanos, decidiu dirigir-se a Santarém, a cidade com as maiores muralhas de Ibn al-Rink, a mais bonita e com mais soldados, assim como a mais forte em aprovisionamentos. Avançou contra eles num avanço que espantou os infiéis e lhes desfez o coração.”Apesar de justificar perante os seus leitores as fortes razões que motivaram a necessidade desta expedição, por causa da “ má vizinhança e graves danos aos muçulmanos infringidos pela má vizinhança de Ibn al-Rink “, Ibn Idari procura a todo o custo realçar o impacto desta expedição e tentar minorar o desastre que representou para o poder Almóada esta operação militar, que deveria ser de castigo contra os portugueses.


Como represália ao desastre sofrido junto das muralhas de Santarém, as tropas almóadas em retirada praticaram uma politica de terra queimada.Refere o texto que depois de ter sido ferido gravemente por um grupo de portugueses:

“O emir al-Mu´minim atravessou o rio Tejo e acampou na outra margem e foi aí que ele se apercebeu da gravidade dos seus ferimentos.


Mandou dissolver a concentração (acampamento) e deu ordem de marcha e avançou pelo meio da região (em direcção ao território muçulmano a caminho de Sevilha pelo meio do território português) e causou uma grande desolação; mandou destruir o que encontrou de edifícios, alterar as águas e arrancar as arvores, arrasar os terrenos semeados e queimar tudo o que podia destruir e fazer desaparecer pelo fogo.

Continuou a marcha desta forma até ao castelo de Turrus e acampou junto a ele, mandou conquista-lo, enquanto repartia parte do seu exercito em colunas para pilharem a região envolvente”.


Esta postura do exército almóada é muito importante, porque ajuda-nos a perceber a noção que o poder almóada tinha na prática da sua doutrina de guerra.

Como o autor refere, as tropas muçulmanas em retirada pelo território sob domínio português e como tal pertencente ao Dar al-Harb[5], praticaram uma politica de terra queimada, onde o propósito é a destruição sistemática de recursos e de bens, num acto de vingança pelo desastre sofrido em Santarém.Tal destruição só é possível em território cristão, mas é proibida e evitada em território considerado islâmico, o chamado Dar al-Islam.


Se o autor muçulmano relata que as destruições foram efectuadas em território cristão e cessam após a conquista do Castelo de Turrus, é porque este castelo sobe o domínio português fazia a fronteira com o império almóada.

Em 1184, o reino de Portugal dominava as cidades de Alcácer e Évora, por isso a fronteira passava um pouco a sul da actual vila do Torrão.Face ao exposto, por questões de ordem toponímica e geográfica, o castelo Turrus referido por Ibn Idari, neste relato só pode ser o actual Torrão.


“As expedições de pilhagem foram confiadas pelo emir almóada, a Sayyid Abu Zayd,, filho do seu irmão Abu Hafs. Este conseguiu ao fim de alguns dias, arranjar com dificuldade alguns bens.

Entretanto o emir almóada tinha ficado no castelo Turrus a descansar.Chegaram junto do califa, mas este estava obrigado a estar deitado e havia dias que não saia e não recebia ninguém.

Pouco depois ordenou porem-se em marcha. Continuou o caminho e a debilidade ia aumentando para desespero dos médicos presentes; -Ibn Zuhr, Ibn Muqil e Ibn Qasim.Pouco depois de ter passado o rio Guadiana (provavelmente pouco depois de Serpa, porque Ibn Idari não especifica o local), o emir morre.


O seu falecimento será mantido em segredo até chegarem a Sevilha. (Será nessa cidade que o seu filho Ya´qub al-Mansur será proclamado como novo soberano do império).

”Segundo o relato que temos estado a comentar, é a partir deste castelo Turrus que as pilhagens e destruições acabam, o que permite afirmar que o castelo do Torrão foi depois de ter sido conquistado aos portugueses, mantido como estrutura militar muçulmana, como guarda avançada do império almóada, sendo inserido no Dar al-Islam.


4. O papel do hisn Turrus/Castelo do Torrão entre 1184 e 1191, na estratégia militar almóada contra Alcácer e Évora.

Por estar muito exposto em termos de fronteira em relação às guarnições cristãs de Alcácer e Évora, o mais provável é que tenham sido instalados no castelo uma guarnição de soldados voluntários da jihad, que ficavam na fortificação a fazerem ribat e efectuarem a vigilância da fronteira.Dominando o castelo do Torrão, o exército almóada podia vigiar de perto as cidades de Alcácer e Évora e interferir com a vida normal dessas cidades, tornando as estradas inseguras, pilhando os campos lavrados e roubando gado aos alcacerenses.


É provável que o castelo tenha sofrido ataques de represália oriundos das guarnições portuguesas instaladas em Alcácer ou Évora, mas as fontes são omissas e não esclarecem o que aconteceu à guarnição muçulmana de morabitinos aí instalados, durante o período de 7 anos que decorre de 1184 a 1191.

Trata-se de uma questão ainda em aberto.Pensamos que a campanha que Ya´qub al-Mansur empreende em 1191, que resulta na conquista Alcácer e na destruição e ocupação por voluntários da jihad dos castelos da Arrábida, terá sido possível graças às informações fornecidas regularmente pelos soldados muçulmanos instalados no Torrão, que empreendiam incursões de espionagem militar para controlarem o movimento e estado das defesas de Alcácer e Évora.


Se houve reocupação portuguesa do Torrão antes de 1191 não sabemos, contudo após a conquista de Alcácer pelos almóadas, o castelo do Torrão torna-se na fortaleza avançada dos almóadas para controlarem os movimentos militares cristãos com origem em Évora.

Pensamos que será este papel de praça militar do Torrão, tanto em contexto islâmico como cristão que será importante para lhe dar prestígio e ser motor de desenvolvimento num território pleno de recursos entre duas cidades importantes (Alcácer e Évora) e que depressa se tornará em sede de concelho no século XIII.Toda esta breve análise histórica permite verificar que o Torrão foi uma importante praça militar nos séculos XII/XIII e que ainda falta muito para investigar sobre a sua história.

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[1] Relatado na obra al-Bayan al-Mugrib Fi Ijtisar Ajbar Muluk al-Andalus Wa al-Magrib, tradução de A Huici Miranda, Volume II, 1953, p. 78, texto e nota 3.
[2] Fernandes, H. 2005. Quando o Além-Tejo era “fronteira”: Coruche da militarização à territorialização. Actas do IV Encontro sobre Ordens Militares. Palmela, p. 459.
[3] Huici Miranda, 1956. Historia Politica del Império Almohade. Primeira Parte, página 306, nota 3.
[4] Nome dado pelos cronistas muçulmanos ao rei D. Afonso Henriques.
[5] Segundo a doutrina medieval islâmica, o mundo encontra-se dividido em duas partes: - O Dar al-Harb /Terra da Guerra e o Dar al-Islam/Terra do Islão.No Dar al-Harb, a ausência de lei islâmica presume que só exista anarquia e imoralidade, daí que o dever dos muçulmanos é reduzir o território do Dar al-Harb, transformando-o em Dar al-Islam (onde a lei islâmica é aplicada) usando para isso a prática de jihad ou então raramente usando meios pacíficos se possível.


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