domingo, outubro 05, 2008

O Santuário do Senhor dos Mártires/Alcácer do Sal, em Contexto Islâmico

Versão digital do texto publicado no Boletim da ADPA nº 7, em 2006.

(Actualização 2008)

Cantigas de Santa Maria, de Afonso X de Castela, século XIII.
Iluminura inserida no "Codice de Florença", referente ao "Milagre"ocorrido no Santuário de Nª Sª dos Mártires de Alcácer do Sal.
Iluminura dada a conhecer pela Dr.ª Maria Teresa Lopes, em 2006.


1. Problemática
A investigação que temos vindo a efectuar sobre a presença almóada em Alcácer do Sal, têm permitido identificar um conjunto de aspectos que nos tem autorizado a olhar com outros olhos o final da presença islâmica na nossa cidade.
Foi num trabalho colectivo que apresentamos no Simpósio Internacional sobre Castelos, ocorrido no ano 2000 em Palmela[2], que avançamos pela primeira vez com a hipótese de ter existido uma madraza em Alcácer do Sal.
Nessa altura tratava-se de uma hipótese inovadora, que permitia demonstrar que Qasr al-Fath também teria sido um pólo cultural no Baixo Sado, para além de ter sido a sede de um taghr/fronteira do Império Almoada.
Esta hipótese contrariava uma ideia preconcebida por vários colegas, que atribuía a Alcácer durante esta fase um papel unicamente de base militar habitada por soldados, alguns mercenários e uma população civil de gostos básicos, pouco inclinados a práticas culturais, mas unicamente preocupados em fazerem a guerra contra o território português unicamente para obter saque.
Apesar dos últimos estudos que têm sido produzidos, esta ideia muito básica e redutora sobre uma Alcácer povoada de pessoas pouco inclinadas à cultura ainda se mantêm e porquê?Uma das razões parece ser a ausência nos dicionários compostos na idade média por autores muçulmanos que não referem sábios provenientes da nossa cidade.
Pensamos que uma análise mais critica destas fontes poderão revelar alguns nomes.
Por outro lado existe uma outra questão que tem sido pouco reflectida e que se prende com o impacto da conquista cristã em Alcácer de que todos somos actualmente herdeiros.
Sobre esta problemática, poderemos a título de exemplo citar dois reputados arqueólogos actuais, os Dr.s. Júlio Navarro Palazon e Pedro Jiménez Castillo que analisaram esta problemática em relação à cidade de Múrcia[3]:
“A la dificultad de reconstruir el passado andalusí de Mursia, (ou de outra cidade islâmica como é o caso de Alcácer do Sal) debido a la perdida de información ocasionada por el paso del tiempo, hay que sumar otra de índole muy diferente: nos referimos al fenómeno ideológico de damnatio memoriae, generado por la sociedad conquistadora, y que consistió en eliminar, e incluso borrar, el recuerdo de una Múrcia plenamente islámica de religión, árabe de lengua y culturalmente oriental, ….….Si no se hubiera conservado fuera de Murcia, sobre todo en bibliotecas norteafricanas, un buen número de manuscritos que testimonian la altura a la que se llegó en el campo de la teosofía, de la teología e, incluso, de la mística, la arqueología difícilmente habría podido documentar que en estas tierras se alcanzó y experimentó un conocimiento de Dios que todavía vivifica a amplias corrientes de la espiritualidad musulmana. Tampoco hubiéramos podido deducir de los restos materiales la existencia de esos sufíes cuyo exponente máximo fue Ibn Arabi”.
Esperamos que com os projectos de investigação actualmente em curso, possamos mostrar a verdadeira projecção desta medina na sua época, que pouco depois da conquista definitiva em 1217, foi escolhida para ser a Sede do Ramo Português da Ordem de Santiago.
É nesta nova perspectiva de análise que voltamos a debruçar sobre a problemática, se efectivamente existiu uma madraza em Alcácer do Sal, onde ficaria localizada?:
- Que permite olhar numa nova perspectiva as origens do Santuário do Senhor dos Mártires.
2. O Santuário do Senhor dos Mártires
2.1. Panorama actual
Conjunto monumental impar do património alcacerense, o Santuário do Senhor dos Mártires localiza-se fora das muralhas do castelo de Alcácer do Sal, a meia encosta, e dominando de uma certa altura um troço importante do curso do rio Sado.
Ao lado passa o caminho de terra batida que ia para Setúbal ao longo do estuário e na linha do horizonte é visível a Serra da Arrábida e o Castelo de Palmela.
O santuário visto do terraço da Capela dos Mestres.
Em segundo plano o rio Sado com as suas margens e as florestas ao longe.Por outro lado, o santuário ocupa um lugar de grande importância estratégica.
É visível do castelo de Alcácer, é possível deste ponto vigiar a curva para norte feita pelo rio Sado em direcção ao estuário e é neste sector que desaparece a escarpa de arenito que se desenvolve desde a colina do castelo, dando lugar a um amplo vale que facilita o acesso ao interior.Desde a sua “fundação” em meados do século XIII, tornou-se num espaço de culto mariano, com o nome de Santa Maria dos Mártires e pouco depois foi escolhido pelos Mestres da Ordem de Santiago para repouso eterno.
Espaço sagrado de enorme prestígio, desde cedo lhe foram atribuídos alguns milagres, contudo torna-se Comenda da Ordem de Santiago e guardiã do espaço rural envolvente da cidade de Alcácer, mantendo activo um culto e aproximação do sagrado que chegou aos nossos dias e que urge manter.
Em boa hora o actual executivo camarário, em conjunto com a Irmandade do Senhor dos Mártires e a Associação de Defesa do Património de Alcácer, procederam a um conjunto de acções que permitiram repor a dignidade do monumento e espaço envolvente, com a criação de uma mais valia museológica.
2.2. Algumas questões em aberto
Se não restam dúvidas sobre a importância deste santuário e sobre o culto cristão desde o século XIII, restam contudo um conjunto de questões mal esclarecidas, que também não foram até ao momento objecto de muita reflexão:
- Estamos a referir sobre o porquê de ter sido escolhido este espaço para erguer o santuário, que surge fora de muralhas numa região em guerra e que utiliza para construção do seu núcleo trecentista um potente edifício em alvenaria, numa zona claramente em défice de pedra boa para construção!Vieira da Silva, no seu estudo sobre a “ Capela dos Mestres em Alcácer do Sal ”[4], refere que o edifício situado a poente da cidade testemunha desde o início o aproveitamento que este espaço teve desde tempos remotos: o de necrópole.
De facto a chamada Capela do tesouro, núcleo construído no século XIII, com os seus arcosólios, denuncia desde o seu início a sua função como espaço funerário. Por outro lado avança a hipótese de ter sido este o primeiro edifício construído em Alcácer pelos espatários após a conquista o Arcosólio existente no interior da denominada “ Capela do Tesouro “.
Deve-se a este autor no referido estudo, a hipótese de o santuário ter o nome de “mártires “, em memória dos que tombaram no decurso da conquista cristã de 1217.
Não pondo em causa muitas das conclusões deste investigador com o qual concordamos, verificamos que o autor ignora o passado islâmico de Alcácer e talvez esse facto o impeça de aprofundar as razões que efectivamente terão levado à “ fundação “ deste espaço sagrado.
Pensamos, com base nos dados actualmente disponíveis, que a razão mais plausível para justificar um altíssimo investimento tendo em conta os condicionalismos da época, é de ter existido neste espaço um edifício ulterior em contexto islâmico, que possuía também características de santuário, sendo objecto de devoção profunda da população muçulmana.
A ter existido uma construção nesse período, esta obedeceu a outros estímulos como iremos expor.Para compreendermos a sua génese vamos ter que recuar alguns séculos.
2.3. O edifício islâmico.
Origem e funçõesComo já foi demonstrado pela arqueologia, o terreno onde se situa o Santuário foi destinado a necrópole desde a Idade do Ferro até ao período romano. Desconhecemos até ao momento enterramentos islâmicos no local.Depois da instalação cristã em Alcácer, o espaço foi de novo elevado à condição de necrópole reservado à ordem de Santiago e à nobreza alcacerense.Contudo que função teve durante os 5 séculos de permanência islâmica em al-Qasr?
Ainda pouco ou nada sabemos sobre a cidade romana de Salacia no Baixo Império, contudo documentação arqueológica até ao momento conhecida, apesar de se referir a achados soltos, demonstram claramente uma continuidade de povoamento na actual colina do castelo até à conquista muçulmana.
Os novos senhores, respeitaram os costumes e culto cristão mediante o pagamento de um imposto e talvez esse facto permita a manutenção da necrópole romana do Senhor dos Mártires, transformando-o lentamente num terreno abençoado, de cariz sagrado e livre de ocupação humana.
Numa primeira fase, é provável que os enterramentos islâmicos fossem dentro do recinto amuralhado, contudo a cidade islâmica foi crescendo e face à falta de espaço após o século X, a necrópole passou para a encosta voltada a poente.
Os enterramentos cristãos provavelmente continuaram na área do Senhor dos Mártires, mas ao longo dos séculos, tendo em conta a absorção da população crente cristã no seio da maioria islâmica, começasse a fazer pouco sentido essa pratica.Se os enterramentos cessaram, é provável que o carácter sagrado do espaço fosse perpetuado de geração em geração.
A própria estrutura defensiva alcacerense vai sofrendo alterações ao longo do tempo em fase dos desafios que iam chegando.Se em meados do século IX após os primeiros ataques vikings, a fortaleza de al-Qasr transformada em ribat era suficiente para a defesa da população, alguns séculos depois em meados dos séculos XII e XIII era necessário efectuar uma reforça total dos sistemas defensivos.
Nesses séculos, que também correspondem à anexação de Alcácer aos impérios Magrebinos, dos Almorávidas e dos Almóadas, a presença cristã e Portuguesa era mais forte e aproxima-se dos arredores da Medina Alcacerense.
O sistema defensivo a longa distância mantêm, mas é necessário criar um outro mais próximo da cidade.Os séculos XII e XIII também são séculos férteis em experiências místicas islâmicas, onde a especulação sobre a natureza de Deus, o desígnio do homem e o destino são objecto de estudo e meditação.
Alguns tratados islâmicos são traduzidos em latim e estudados no mundo cristão.A toponímia que sobreviveu até hoje, mostra para a região de Alcácer a existência de lugares onde viveram esses místicos, que procuravam tornar-se “ mártires no caminho de Deus “.Poderemos referir a titulo de exemplo o “ Cerro das Arrábidas “, Freguesia de São Pedro da Marateca, Concelho de Palmela na fronteira com o Concelho de Alcácer e que até ao século XX era um local de festa profana e peregrinação ritual durante a Páscoa.
Face ao exposto, é provável que nessa época tenha sido construído uma rábita (Convento islâmico) no Senhor dos Mártires, que teria uma função de “ jhiad activa “ na defesa do território em caso de ataque, mas que durante o resto do ano estaria dedicado à jhiad mais importante que é a “ passiva”.
Esta “ jhiad passiva ou esforço individual” é praticado na procura de Deus e dos seus propósitos.Nesse sentido, a comunidade religiosa que aí vivia, e com base em documentação referente a outros lugares similares no al-Andalus, cuidava da sua horta, meditava, prestava atenção aos desfavorecidos, dava apoio aos viajantes e dedicava-se ao ensino num espaço mais profano, numa estrutura anexa que poderia ter o nome de “ madraza”.
Dessa presença muçulmana poucos vestígios chegaram até hoje, mas importa valorizar o significado profilático de um alto-relevo islâmico actualmente visível na parede exterior da torre da Igreja do Senhor dos Mártires.
Trata-se de um pentagrama que apresenta um programa decorativo inserido na linguagem simbólica de origem berbere e que podemos encontrar bem representado por exemplo na bandeira que o califa almóada al-Nasir perdeu na batalha de Navas de Tolosa em 1212, quando foi derrotado pelo Rei Castelhano Alfonso VIII.
Na bandeira almóada este símbolo representa o poder e encontra-se dentro de um círculo. Este por sua vez encontra-se ladeado por alguns leões.
A terminar, de referir que no decurso da intervenção arqueológica efectuada no santuário sob a direcção do arqueólogo Cavaleiro Paixão, em conjunto com a Dr.ª esmeralda Gomes e Frederico Tatá, informação que agradecemos, foi encontrado um fragmento de talha estampilhada almóada que reforça a presença tardo islâmica neste espaço.
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Actualização de 2008:
Este local terá servido de Musalla em contexto Tardo-Islâmico, especialmente em contexto Almoada. Tambem serviria de recinto para treino militar e pedir chuva em anos de seca.
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[1] Paixão, Faria e Carvalho, 2000. A Presença Almoada em Alcácer do Sal
[2] Navarro Palazón, Júlio e Jiménez Castillo, Pedro – Religiosidad y creencias en la Múrcia musulmana. Testimonios arqueológicos de una cultura oriental. Huellas. Catedral de Murcia. Catalogo da exposición. Citação retirada das páginas 58 – 59.
[3] José C. Vieira da Silva, 1995. A Capela dos Mestres em Alcácer do Sal, páginas 234-238.

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